terça-feira, 1 de setembro de 2009

No jardim do Rei não há lugar para os porquês…(II)

(Temos um final, será certo?)
Nem acredito nele, nem em mim, nem na vida, nem em ninguém que viva. Curioso. Acredito nos meus mortos, nos que não estão, nos que não vejo. Acredito e credito-vos, assim. Com o coração, com a memória, com as histórias, com os tormentos, com as imagens, os sentidos plenos (e recriados a esforço) que me preenchem a amnésia afectiva.
Aquilo a que muitos estudiosos chamam de Sentimento de Imortalidade Simbólica: sentimento de permanecermos na lembrança de amigos e familiares, mesmo após a nossa morte… Apenas a capacidade de renegar a própria morte dá ao homem a possibilidade de sobreviver mentalmente. O Homem saberá ser mortal? Não se quer sobreviver a ninguém e tem-se medo de morrer.
Por isso, talvez, não se encontrem respostas no jardim dos porquês. Por isso, talvez, nem adianta nada inventar porquês, lembrá-los, chamá-los… só faz barulho, só enlouquece, só angustia, só aterroriza. Enrola a voz num novelo de dor e cala o coração… tenho tanto medo que o cale, para sempre. Tenho tanto medo de já nem saber amar, deixar-me amar, de não saber partilhar, de não saber conversar sequer… Medo, medo de novo. Hoje e sempre. É o que a tantos, em tantos fios do tempo, consome.
No jardim do Rei não há lugares para porquês… Porquê? Porque sim, porque não. Porque não cabem, porque não fazem sentido, porque seria inquirir a suposta ausência e nulidade. E isso não é assim: o vazio corrói o exterior, além dos limites do meu corpo, por vezes até me chega à alma, ao sangue…ao coração, parece que cria uma cova corrosiva, como se um meteoro tivesse caído…explodido, destruído tudo. E fica o buraco, a cratera, o nada, o cheiro a morte. Mas não… às vezes percebo que não. Porque, às vezes, percebo que até as estátuas têm um sentido. E, assim, as crateras existem porque têm de existir a dada altura da nossa vida; existem porque as montanhas não nascem feitas e erguidas no ar desde o tempo 0; existem porque não há nenhuma árvore que tenha surgido já imponente e forte; existem porque as sementes mais poderosas guardam-se, em nós, alimentam-se e aquecem-se o suficiente para germinarem bem, sem pressas, sem estufas artificiais, sem químicos que rasgam o sentido natural da desovação…
No jardim do Rei não há lugares para porquês…porque até as estátuas têm um motivo para lá estar: enfeitam, fazem sombra, olham-te, esperam-te sem pressas, caladas e pacientes. As estátuas estão lá, sem medo de estar, sem revolta por serem apenas isso… estátuas. Observam-nos os passos e a urgência de andar. E ficam assim… a pensar “como são tolos estes humanos, afinal para onde correm? Onde querem chegar? Sofrem porque tudo tem um fim, mas apressam-se sempre para chegar ao fim de tudo”.
As estátuas lá estão… sábias e calmas, como que envoltas num manto de tranquilidade (surda), imbuídas no mar e na cor das flores do jardim. Até as estátuas têm de lá estar, enfeitam, esperam, fazem parte. Pertencem.
Pertencem.
Pertencer a algo ou alguém é o que todos queremos.
Elas conseguem-no, no limite do seu silêncio e aparente despropósito.
Por vezes, como nestas vezes, temos de aprender a ser estátuas… observar e absorver o real. Por mais amargo que nos pareça. Nos momentos de maior dor temos de estátuas. Temos de aceitar que nem todos os dias a vida é feita de papéis activos, buscas, descobertas entusiastas. Temos de aceitar que a morte chega-nos e pede-nos isso: sê estátua. Resiste aos porquês.
Possivelmente, perante tudo, esse é um dos maiores desafios da morte, na vida de quem fica: resistir às dúvidas rancorosas e cavernosas, que apenas consomem, retiram forças, vontades, constroem um manto de avolição e aflição…

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